Transcrevo abaixo as anotações da:
Conferência de abertura – III INFORMACCE – Salvador/BA -
UFBA
Experiência, diferença e formação
Carlos Skliar – Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais / Argentina
Eu queria começar, disse Skliar, com uma preocupação que tem
a ver com o que muitos de nós poderíamos chamar de depreciação da escola pública.
Ou de uma crítica de alguns intelectuais que estão esperando novos governos
para inserir seu discurso.
Tenho lidos nos jornais uma forma de crítica da escola
pública que eu ouço como uma crítica ao público, à natureza pública da escola.
Essa crítica geralmente acontece com 3 comentários: tem alguma coisa errada com
o público; o público é tradicional e o tradicional está ligado com o passado.
Quase que o sintoma da crítica aparece nesse caráter
público, tradicional, do passado. Eu odeio aquela frase que diz que temos
escola do século XIX, professores do século XX e alunos do século XXI.
Ele citou Jacques Derrida para dizer que todos nós habitamos
todos os tempos.
A crítica massacra o caráter contemporâneo que a escola tem
que ter. Nossa preocupação como educador é com o contemporâneo.
Eu defendo o público, disse Skliar. Mas minha pergunta aqui
é a pergunta do momento: em qual linguagem eu vou assumir essa defesa?
Tenho a sensação que a linguagem da Educação, se algo assim
existe, não é a linguagem técnica, não é
a linguagem econômica, não é a linguagem política. A questão é a
LINGUAGEM. Em qual linguagem a gente vai conversar sobre Educação?
Estamos em um momento que temos de tomar a decisão sobre
qual linguagem a gente vai conversar a Educação.
É a pátria dos afetos.
Educar faz parte dos afetos. Mas afeto também pode ser
superficial, banal. A gente escolhe afetar, ou afeição, porque implica uma
relação de “eu te afeto e me sinto afetado”. Quer dizer uma relação recíproca.
Totalmente diferente de “eu te tolero, eu te respeito”.
Tem dois limites muitos claros em relação ao outro. O limite
de um é o corpo do outro. Você não pode ultrapassar, violentar o corpo do
outro. É claro que a gente vive uma época em que não tem esse limite. Eu posso
tocar, mas não devo ultrapassar o corpo do outro.
O segundo limite é que o outro continua sendo o outro.
Jamais a gente pode pensar em afeição na qual o
outro precisa deixar de ser o outro, em nome da inclusão.
Cada vez que o outro precisa tentar ser equivalente, não tem
afeição. Tem domínio, tem poder, mas não tem afeição.
Hannah Arendt dizia que educar tem a ver com amar
suficientemente o mundo para que não deixemos o mundo se acabar.
Na pergunta da Arendt: quem ama o mundo suficiente para não
deixar que ele se acabe?
Educação tem a ver com pensar em como deixar que o mundo
continue.
A segunda questão que nos deixou Hannah Arendt é se amamos
suficientemente o outro para não deixá-los soltos ou à própria sorte.
Eu vou propor um pentagrama: são cinco movimentos que
acontecem ao mesmo tempo para responder à pergunta inicial de porque o público
é criticado. Vou tentar responder essa pergunta com a segunda que é através de
qual linguagem fazer essa defesa.
Se o professor pudesse me escutar, eu queria propor ao
professor se pensar em cinco movimentos. Nenhum deles é técnico, político,
econômico. Todos são de outra natureza.
Eu tenho que dizer primeiro, em função da linearidade da
fala. Mas não tem ordem.
Vou começar por um movimento que é evidente. Preciso começar
pela IGUALDADE, ainda que minha fala seja sobre a diferença. Por que começar
pela igualdade? Porque o educador é um igualador em primeiro lugar. No sentido de estar frente a um grupo e considerar a todos iguais. Não idênticos,
não equivalentes, mas no sentido de COMO QUALQUER UM.
O educador precisa pensar seu encontro com os outros como um
encontro com qualquer um. A expressão qualquer parece pejorativa. Mas quando
recorremos ao caso de pessoas que passaram por instituições especiais, e elas
são perguntadas de como gostariam de ser tratadas, elas usam a palavra
qualquer. “Eu queria ser tratado como qualquer um”. Esse igual não pode ser
colocado como uma promessa.
A igualdade ou é um amor à primeira vista, ou não é. Eu
chego a um lugar e te reconheço, sem precisar de apresentações ou
representações.
Tem olhares que mancham, tem olhares que matam. Nietzsche
diz que tem homens que mancham com seu olhar. Não tem pessoas manchadas, tem
olhos sujos.
Quando o olho vê de forma turva, já existe uma morte. O
educador vê com esse olhar de igualdade, para não manchar nem matar o outro.
O professor igualador é aquele que não mancha nem mata com o
seu olhar.
Estar à mesma altura, valer a pena, deixar em paz. São as
frases mais ditas no interior das instituições educativas.
Se a gente sente que não está à altura, a sensação é de
humilhação.
As coisas mais interessantes da vida são aquelas que valem a
pena. Se eu te convido a ler, não é para estar à mesma altura, mas para que possa
valer a pena para você.
Valer a pena e deixar em paz é o gesto mais igualitário da
educação.
O segundo movimento. Lembrando que não é uma sequência de
movimentos.
Ele seria a separação ou a distância entre o ato de ensinar
e o ato de aprender.
A gente assume a responsabilidade de ensinar e o outro
assume a responsabilidade de aprender. Na sua raiz, “in-signar” significa
oferecer signo aos outros. Ensinar não é avaliar.
Dar esse mundo ao outro não significa pedir o mundo de
volta. Não existe dívida nenhuma. A nossa responsabilidade está em oferecer.
Oferecer signos como sinais da cultura que o outro decifrará
ao seu tempo e o seu modo. Me parece fantástica essa ideia, porque ensinamos
hoje e não sabemos quando e o quê se aprende.
A segunda imagem é o doador de tempo. Você deve oferecer
tempo ao outro, para que ele possa decifrar no seu tempo. Por isso a gente não
pode unir no mesmo tempo ensinar e aprender. Porque aprender tem a ver com a
fragilidade.
A gente pode pensar que o que o aluno me devolveu, naquele
momento é o devolvido e não o aprendido. Nesse sentido, no lugar da avaliação,
a gente deveria ter uma ficha de devolução.
O aluno devolve porque o sistema pede.
Terceiro movimento. O tempo.
É você que tem que decidir se vai educar com o tempo livre
ou com o tempo do trabalho. A criança sai da escola com a sensação que
trabalhou.
A gente tem que discutir também se o tempo da escola é o
tempo da vida. Como diz George Steiner, a escola não é um lugar para parar. A
escola muda a relação com o tempo.
Há uma relação direta, terrível entre termo e norma ou
normalidade. Se você não tem tempo você julga o outro, se você tem tempo você
conversa com o outro. Se você não tem tempo na escola você avalia a outro,
controla o outro.
O tempo faz parte de uma Política (maiúscula) da escola.
O quarto movimento é pensar o quando imaginamos as
pedagogias sempre cronologicamente. Cada vez que pensamos em dar sinais ao
mundo, colocamos em uma linha do tempo. O que não faz sentido vai fazer mais
adiante, isso que você não sabe hoje ainda vai saber, e por aí vai.
Esse quarto movimento eu chamo de Pedagogia do instante. Não
que eu ache que o que interessa é o aqui e agora. Os poetas, por exemplo, sabem
durar o tempo.
Temos de pensar no que acontece aqui e agora. Não mais na
promessa do sentido. Dar sentido agora, nesse tempo.
Por último, o quinto movimento. Nada de tudo isso valeria a
pena: igualdade primeira, fragilidade do aprender, gosto pelo tempo livre, se a
gente não pensar na paixão pela SINGULARIDADE.
A diferença não é o reflexo negativo de um ou outro. Mas a
paixão pelas vidas alheias, que todo educador tem de sentir.
Adorar as vidas dos outros. Essa paixão pela singularidade
fecha o pentagrama.